sábado, 5 de fevereiro de 2011

Mãos dadas no cinema (mais uma de Martha)


No dia dos namorados os restaurantes lotam, os vinhos são solicitados e as velas em cima da mesa são acendidas, há todo um clima propício para olhos nos olhos e confirmações verbais de amor. Clichê para quem vê de fora. Estando dentro, aceita-se as regras do jogo, é uma das formas recorrentes de comemoração. Mas, tivesse eu que escolher o símbolo máximo do namoro, não me restringiria aos prazeres da mesa nem mesmo aos da cama, incluindo entre os da cama colocar sobre a colcha um gigantesco bicho de pelúcia, um dos presentes preferidos para celebrar a data. Namoro que é namoro está representado por algo muito mais simples, sutil, barato e íntimo: os dedos entrelaçados no escuro do cinema, De mãos dadas se constrói uma relação.

Do que sentem falta os amantes clandestinos? Luxúria eles têm de sobra. O que lhes falta é esta forma brejeira de intimidade: dar-se as mãos. Na rua é arriscado, há olhos por todos os lados, já no cinema é possível providenciar um encontro às escuras e ali realizar a mais tórrida aproximação de corpos, um ato realmente subversivo para adúlteros: unir as mãos como dois namorados.

Se, ao contrário, o casal tem um namoro oficializado, sem razão para segredo, ainda assim o segredo se manterá entre eles pelo simples fato de que as mãos dadas dentro do cinema não são uma representação pública de amor, e sim um carinho privado. Ninguém está testemunhando, ninguém está reparando, a platéia está toda de olho na tela, e o casal também, porém seguros um no outro através de um entrelaçamento que, à luz do dia, seria corriqueiro, um simples hábito sem maior significância, mas que num espaço compartilhado com estranhos, no escuro, torna-se uma forma particular e irresistível de cumplicidade.

Esse gesto mundano e trivial carrega um significado que muitas vezes nem mesmo um beijo - um beijo! - possui. Pergunte a uma viúva do que ela mais sente falta do falecido, e é bem capaz de ela lembrar só das incomodações que o infeliz causava, mas as mãos agarradas dentro do cinema hão de despertar sua saudade. Pergunte a mesma coisa a alguém que está vivendo uma dor-de-cotovelo daquelas. Mesmo sofrendo, é provável que não se comova com a lembrança das brigas nem dos "eu te amo", mas ter que assistir a uma comédia romântica de braços cruzados há de ferí-la de morte. E os casados há vinte, há trinta, há cinquenta anos? Podem atualmente rugir um para o outro na sala de jantar, mas dentro do cinema ainda tratam-se como se tivessem se conhecido ontem e não perdem o hábito instaurado no primeiro filme de suas vidas. se não o fazem mais, é porque o casamento acabou e não foram avisados. O último resquício de amor ainda se confirma com as mãos dadas dentro do cinema. Há salvação para os que as mantêm unidas ao menos ali.

Amanhã (isto é, um dia após o dia em que esta crônica fo escrita, no dia 11 de junho de 2006) será dia de restaurantes lotados. Aleluia, abrirão todos nesta segunda-feira, como costumam fazer as cidades civilizadas. Muitas rolhas de vinho tinto serão espocadas, umas tantas outras de champagne. Quem tem fondue no cardápio servirá fondue, e mesmo as pizzas serão degustadas como um prato especial. Pudera, é mesmo um dia especial.

Mas será dentro dos cinemas que a declaração mais terna e espontânea se dará.

Nenhum comentário: