domingo, 19 de junho de 2011

Namastê *


* NAMASTÊ = O Deus que há em mim saúda o Deus que há em você.

As contradições


Essa figura me inspira! Caminho delicioso, dá até pra sentir o cheiro das flores e a alegria de entrar em um lugar desses, colorido, alegre, suave, apaziguador...
Quando a vida nos enche de contradições, talvez uma saída seja imaginar um lugar desses e nos reabastecermos de energia pra continuar...
Num mundo de conflitos, extremos, desgastes e preocupações, como escapar? Talvez recorrendo às imagens que temos dentro de nós, imagens semelhantes a esse lugar belo e gostoso, um canto nosso para refazermos as forças e iniciarmos uma semana!

O enterro do "não consigo"


A turma da quarta série de Donna parecia-se com muitas outras que eu vira antes.
Os alunos sentavam-se em cinco fileiras de seis carteiras. A mesa do professor era
na frente, virada para os alunos. O quadro de avisos exibia trabalhos dos alunos.
Em muitos aspectos, parecia uma sala de escola primária tipicamente tradicional.

Mesmo assim, algo me pareceu diferente naquele primeiro dia em que entrei ali. Parecia haver uma corrente subterrânea de excitação.

Donna era uma professora veterana de uma cidadezinha de Michigan, e faltavam apenas dois anos para sua aposentadoria. Além disso, era voluntária ativa num projeto municipal de desenvolvimento de equipes que eu organizara e auxiliara. O treinamento se concentrava em idéias artísticas de linguagens, capazes de estimular os alunos a se sentirem bem consigo mesmos e assumirem a responsabilidade sobre suas vidas.

O trabalho de Donna era assistir às sessões de treinamento e implementar os conceitos apresentados. Meu trabalho era visitar as salas de aula e encorajar a implementação.

Tomei um lugar vazio no fundo da sala e assisti. Todos os alunos estavam trabalhando numa tarefa, preenchendo uma folha de caderno com idéias e pensamentos.

Uma aluna de dez anos, mais próxima de mim, estava enchendo a folha de "não consigos".
"Não consigo chutar a bola de futebol além da segunda base."
"Não consigo fazer divisões longas com mais de três números."
"Não consigo fazer com que a Debbie goste de mim."

Sua página já estava pela metade e ela não mostrava sinais de parar.
Trabalhava com determinação e persistência. Caminhei pela fileira olhando
as folhas dos alunos.
Todos estavam escrevendo sentenças que descreviam o que não conseguiam fazer.
"Não consigo fazer dez flexões."
"Não consigo comer um biscoito só."

A esta altura, a atividade despertara minha curiosidade, e assim decidi verificar com a professora o que estava acontecendo. Ao me aproximar dela, notei que ela também estava ocupada escrevendo. Achei melhor não interromper.
"Não consigo trazer a mãe de John para uma reunião de professores."
"Não consigo fazer com que minha filha abasteça o carro."
"Não consigo fazer com que Allan use palavras em vez de murros."

Frustado em meus esforços em determinar por que os alunos estavam trabalhando com negativas, em vez de escrever frases mais positivas, ou "eu consigo",
voltei para o meu lugar e continuei minhas observações.

Os estudantes escreveram por mais dez minutos. A maioria encheu sua página. Alguns começaram outra.
- Terminem a página em que estiverem e não comecem outra, foram as instruções
que Donna usou para assinalar o final da atividade.

Os alunos foram então instruídos a dobrar suas folhas ao meio e trazê-las para a
frente da classe.

Quando os alunos chegaram à mesa da professora, depositaram as frases "não consigo" numa caixa de sapatos vazia. Quando as folhas de todos os alunos haviam sido recolhidas, Donna acrescentou as suas. Ela pôs a tampa na caixa, enfiou-a embaixo do braço e saiu pela porta, pelo corredor.

Os alunos seguiram a professora. Eu segui os alunos.

Na metade do corredor a procissão parou. Donna entrou na sala do zelador, remexeu um pouco e saiu com uma pá. Pá numa das mãos, caixa de sapatos na outra, Donna saiu para o pátio da escola, conduzindo os alunos até o canto mas distante do playground. Ali começaram a cavar.

Iam enterrar seus "Não consigo"! A escavação levou mais de dez minutos, pois a maioria dos alunos queria sua vez. Quando o buraco chegou a cerca de um metro
de profundidade, a escavação terminou. A caixa de "não consigos" foi depositada
no fundo do buraco e rapidamente coberta de terra.

Trinta e uma crianças de dez e onze anos permaneceram de pé, no local da
sepultura recém cavada. Cada um tinha no mínimo uma página cheia de "não consigos" na caixa de sapatos um metro abaixo. E a professora também.

Neste ponto, Donna anunciou: "Meninos e meninas, por favor dêem-se as mãos e baixem as cabeças." Os alunos obedeceram. Rapidamente, dando-se as mãos, formaram um círculo ao redor da sepultura. Baixaram as cabeças e esperaram.
Donna proferiu os louvores.

- Amigos, estamos hoje aqui reunidos para honrar a memória do ‘Não consigo’. Enquanto esteve conosco aqui na Terra, ele tocou as vidas de todos nós, de alguns mais do que de outros. Seu nome, infelizmente, foi mencionado em cada instituição pública, escolas, prefeituras, assembléias legislativas e, sim, até mesmo na Casa Branca. Providenciamos um local para o seu descanso final e uma lápide que contém seu epitáfio. Ele vive na memória de seus irmãos e irmãs

‘Eu consigo’, ‘Eu Vou’ e ‘Eu vou imediatamente’. Estes não são tão conhecidos quanto seu famoso parente e certamente ainda não tão fortes e poderosos. Talvez algum dia, com sua ajuda, eles tenham uma importância ainda maior no mundo. Que ‘Não Consigo’ possa descansar em paz e que todos os presentes possam retomar suas vidas e ir em frente na sua ausência. Amém.

Ao escutar as orações entendi que aqueles alunos jamais esqueceriam esse dia. A atividade era simbólica, uma metáfora da vida. Foi uma experiência direta que ficaria gravada no consciente e no inconsciente para sempre. Escrever os "Não Consigos", enterrá-los e ouvir a oração. Aquele havia sido um esforço maior da parte daquela professora. E ela ainda não terminara. Ao concluir a oração ela fez com que os alunos se virassem, encaminhou-os de volta à classe e promoveu uma festa.

Eles celebraram a passagem de "Não Consigo" com biscoitos, pipoca e sucos de frutas. Como parte da celebração, Donna recortou uma grande lápide de papelão. Escreveu as palavras "Não Consigo" no topo, "Descanse em Paz" no centro e a data embaixo.

A lápide de papel ficou pendurada na sala de aula de Donna durante o resto do ano. Nas raras ocasiões em que um aluno se esquecia e dizia "Não consigo", Donna simplesmente apontava o cartaz Descanse em Paz. O aluno então se lembrava que "Não Consigo" estava morto e reformulava a frase.

Eu não era aluno de Donna. Ela era minha aluna. Ainda assim, naquele dia aprendi uma lição duradoura com ela. Agora, anos depois, sempre que ouço a frase "Não Consigo", vejo imagens daquele funeral da quarta série. Como os alunos, eu também me lembro de que "Não Consigo" está morto.


Chick Moorman

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Um pouco de cultura

O texto é acadêmico, mas analisa muito bem como estamos presos à vida de controle. Vale a pena perder (ou ganhar?) uns minutos para refletir.
Vejo tanta gente empolgada com a vida nas empresas e me pergunto se não percebem o quanto vão sendo amarradas por elas. Tá certo, ganhar dinheiro é bom, ter uma vida confortável quem não quer? Não quero ser hipócrita, mas não me animo com essa vida corporativa tão almejada por tanta gente.
Nunca engoli esse lance de "alma da empresa", "somos uma família", blábláblá. Nunca repeti esse discurso, mesmo antes de ter entrado para a área acadêmica. Posso ter ficado mais crítica, mas já enxergava essas papagaiadas.
Enfim, ninguém nos obriga a concordar, mas quero ver se alguém em sã consciência discorda de Deleuze.
Boa leitura para quem estiver disposto!

Abraços,

Carla



POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE
Deleuze

I. HISTÓRICO

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu
apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de
confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada
um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua
família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de
vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento
por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51
pode exclamar, ao ver operários, “pensei estar vendo condenados...”. Foucault
analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível
especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo;
compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma
das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste
modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram
completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir
sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e
Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as
disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças
que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra
mundial: sociedades disciplinares é o já não éramos mais, o que deixávamos de
ser.
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento,
prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior” em crise como
qualquer outro interior, escolar, profissional etc. Os ministros competentes não
param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola,
reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas
instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas
de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se
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anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades
disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo
monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também
analisa sem parar as formas ultrapassadas de controle ao ar livre, que substituem
as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe
invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares,
manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo
processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável,
pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por
exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os
hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas
liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que
rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas
buscar novas armas.
II. LÓGICA
Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo
são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a
linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os
diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando
um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer
necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas
os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que
mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas
mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos salários: a
fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o
mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas
numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma
alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a
empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada
salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios,
concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas
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têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A
fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do
patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam
uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade
inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos
entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do
“salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a
empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o
controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a
escola à empresa.
Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da
caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a
empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de
uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se
instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as
formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares
(entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em
variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso
direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para
entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica
o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as
disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o
poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre
os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault
via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e
cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em “pastor”
laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é
mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao
passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto
do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do
controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se
está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”,
divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o
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dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que
a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida
padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que
fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A
velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o
é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à
serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e
nas nossas relações com outrem. O homem da disciplina era um produtor
descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando
em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos
esportes.
É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as
máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais
capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania
manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades
disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo
passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle
operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e
computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a
introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente,
uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem conhecida que pode ser
resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e
de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o
capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também
eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa
familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por
especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas
atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com
freqüência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do
têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não
compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos
acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que
quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas
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para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é
essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o
exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para
um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas,
deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a
arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As
conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação
de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por
transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção
ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma”
da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente
a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de
controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de
curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a
disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o
homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve
como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais
para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que
enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.
III. PROGRAMA
Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle
que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa
reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma
cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças
a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia
também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a
barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e
opera uma modulação universal.
O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora,
deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar
dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser
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que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania,
retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no
início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas “substitutivas”, ao
menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que
obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as
formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente
sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade,
a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade. No regime dos
hospitais: a nova medicina “sem médico nem doente”, que resgata doentes
potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em
direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico
pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada. No regime da empresa: as
novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam
pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender
melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação
progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais
importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história,
à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou
cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle?
Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater
as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem
“motivados”, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles
descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores
descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente
são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.

Post-scriptum Sobre as Sociedades de Controle,
in L´Autre Journal, nº 1, maio de 1990, e publicado em Conversações, 1972 – 1990 /
Giles Deleuze; tradução de Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro : Ed 34, 1992