terça-feira, 19 de maio de 2009

As marcas cerebrais dos maus-tratos na infância


Estudo mostra que abusos sofridos na infância mudam a maneira de o cérebro humano responder ao estresse

Somos produto do meio, ou de nossa biologia? "Dos dois", é a resposta à qual a ciência chegou; o debate entre natureza e ambiente há tempos se tornou, felizmente, irrelevante. Hoje reconhecemos que, se por um lado nosso comportamento é fruto do funcionamento do cérebro que temos, este por sua vez depende da combinação de nossa biologia com história de vida - ou seja, com o meio social e acontecimentos pelos quais passamos.

A questão agora é como as experiências de vida afetam o cérebro, às vezes de maneira a deixar traços que duram pelo resto da vida. Dois tipos de experiências opostas com esse poder são a violência e o carinho: quando ocorrem na infância, ambas são capazes de modificar o cérebro, em sentidos contrários, por toda a vida adulta - ao menos no que diz respeito à sua capacidade de lidar com adversidades, ou estresse.

Em uma série de experimentos com ratos, Michael Meaney e sua equipe, na Universidade McGill, no Canadá, mostraram que a prole que recebe cuidados maternos - lambidas, no caso - tem respostas ao estresse menores do que proles não lambidas, produzem níveis menores de hormônios do estresse, têm menos probabilidade de sofrer de distúrbios de ansiedade (sim, ratos também sofrem de ansiedade) - e ainda se tornam mães carinhosas com sua própria prole, quando chega sua vez. Ratos que recebem carinho na infância gozam de respostas mais saudáveis ao estresse na vida adulta - e passam adiante à o carinho que receberam.

O efeito do carinho materno sobre o cérebro envolve a ativação por serotonina de neurônios do hipocampo, o que leva à maior produção de um fator de transcrição que aumenta a produção de receptores para hormônios do estresse. Com maior sensibilidade a esses hormônios, o hipocampo, em um mecanismo de auto-regulação por retroalimentação negativa, consegue inibir a resposta do cérebro ao estresse e impedir que ela se torne exagerada.

A produção de mais receptores também depende, contudo, de metilação - um tipo de modificação epigenética permanente do DNA, que não altera o código genético (a sequência de bases) mas muda como ele é usado. Por mecanismos ainda não conhecidos, o gene que determina a produção de receptores para hormônios do estresse quase nunca é metilado em animais que recebem carinhos maternos na infância. Sem metilação, grandes quantidades de receptor são produzidas; o hipocampo, assim bastante sensível ao hormônio do estresse, é capaz de inibir rapidamente respostas exageradas ao estresse; e o animal fica, então, protegido (mas não invulnerável!) contra efeitos adversos do estresse crônico ao longo da vida.

Sem carinho materno, no entanto, o DNA do receptor de hormônios do estresse é metilado - e poucos receptores são produzidos. Resultado: respostas intensas do cérebro ao estresse, maior vulnerabilidade a adversidades - e maior chance de sofrer de distúrbios associados ao estresse ao longo de toda a vida.

Tudo isso já foi bem demonstrado em ratos. Como níveis mais altos de hormônios do estresse são encontrados em humanos adultos que sofreram violência na infância, bem como uma maior vulnerabilidade a distúrbios de ansiedade, de humor, esquizofrenia e suicídio, era provável que as mesmas modificações epigenéticas que ocorrem no cérebro de ratos que não recebem carinho acontecessem no cérebro humano vítima de maus-tratos na infância.

A comprovação chegou agora: em estudo publicado em fevereiro de 2009 na revista Nature Neuroscience, o grupo de Michael Meaney comparou a metilação do DNA do receptor de hormônios do estresse e os níveis desse receptor no hipocampo de pessoas vítimas de suicídio que foram vítima de abusos sexuais, físicos ou negligência na infância, e compararam com vítimas de suicídio sem tal histórico, e pessoas que morreram subitamente de outras causas. Resultado: as primeiras, e somente elas, mostravam menor expressão do receptor - e metilação aumentada do DNA correspondente. A modificação não é, portanto, associada ao suicídio ou aos fatores de estresse que devem levar a ele; mas é muito provavelmente associada ao histórico de maus-tratos na infância.

É particularmente notável que o resultado do comportamento alheio - carinho, falta dele ou violência - sejam modificações no cérebro que resultam em mais do mesmo comportamento. Seja tratado com negligência ou violência na infância, e seu cérebro muda o modo de usar seu DNA de uma maneira tal que ele será mais propenso a ser, ele também, violento quando adulto. Ao contrário, receba carinho na infância e seu cérebro muda o modo de usar o DNA de uma maneira que o protege de adversidades e o deixa, ele também, mais carinhoso quando adulto.

E pensar que, quando eu era criança, a cartilha do pediatra Benjamin Spock - e de tantas mães - ditava que os bebês fossem deixados a chorar em seus berços, porque "carinho demais mima e faz mal". Que bom que minha mãe não deu ouvidos a ele... (SHH, março de 2009)

Fontes:

McGowan PO, Sasaki A, D'Alessio AC, Dymov S, Labonté B, Szyf M, Turecki G, Meaney MJ (2009) Epigenetic regulation of the glucocorticoid receptor in human brain associates with childhood abuse. Nature Neuroscience 12, 342-348.

Hyman SE (2009) How adversity gets under the skin. Nature Neuroscience 12, 241-242.

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